O que são as compras de ativos dos bancos centrais?

Ana Carrisso | Fidelity

Diretora associada de Vendas, Fidelity International
Licenciada em Comércio e Administração de Empresas pela LCCI, Ana Carrisso integrou a equipa da Fidelity International Iberia em 1998, onde desenvolveu toda a sua carreira no setor da gestão de ativos.

Julho de 2024 por Ana Carrisso

Na altura não sabíamos, mas em 2008 o então presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, deu início à maior experiência monetária deste século sob o acrónimo QE (quantitative easing ou estímulo quantitativo). A autoridade monetária dos EUA lançou o seu primeiro programa de compra de ativos, uma medida extraordinária para tempos igualmente extraordinários. 

O primeiro QE foi um programa de compras mensais de MBS (mortgage backed securities) e dívida garantida por agências governamentais, que surgiu depois de a Fed ter reduzido, sem sucesso, as taxas de juro para o nível de emergência de 0,25%. A lógica por detrás das compras de ativos financeiros é que o banco central, atuando como um comprador forte, aumentaria a procura, provocando um aumento do preço das obrigações e, consequentemente, a queda das taxas de juro. Esta descida das yields das obrigações refletir-se-ia nos custos de financiamento dos empréstimos bancários, repercutindo-se na economia real como um impulso ao consumo e ao investimento, estimulando a subida da inflação.

Apesar de Bernanke ter sido duramente criticado pela sua heterodoxia, o QE converteu-se numa ferramenta de choque que a Fed voltou a utilizar entre novembro de 2010 e junho de 2011 (QE2) e entre setembro de 2012 e outubro de 2014 (QE3), alargando-a à compra de obrigações do Tesouro dos EUA. Além disso, Bernanke pôs os mercados a mexer com a Operação Twist entre 2011 e 2012 (Maturity Extension Program ou MEP, um programa que consistente na venda de dívida do Tesouro de curta duração e aquisição de obrigações de longa duração) e iniciou uma política de reinvestimento a vencimento dos ativos presentes no balanço da Fed. 

As compras de ativos na Europa

Em 2012, Mario Draghi agitou os mercados com o seu famoso “Whatever it takes”. Tornou-se o homem que salvou o euro com a sua ideia brilhante, o mecanismo OMT (Outright Monetary Transactions), que permitia ao BCE comprar dívida emitida por países da zona euro no mercado secundário e que nunca chegou a ser executado. O BCE implementou outros programas, como os TLTRO (Targeted Longer-Term Refinancing Operations), um mecanismo pensado para estimular a economia da zona euro através do canal de crédito, facilitando o financiamento aos bancos a custos muito favoráveis, na condição de estes poderem transferir esse dinheiro para as empresas e consumidores através de empréstimos. 

Foram os anos do “lower for longer”, as taxas diminuíram para níveis negativos, levando o investidor a pagar literalmente ao emitente para ser o detentor da sua dívida. O efeito não poderia ter sido mais pernicioso para os investidores, encorajando a procura de rentabilidade em ativos cada vez mais arriscados.

O impacto da pandemia

A chegada de Janet Yellen à Fed traduziu-se uma retirada muito gradual dos estímulos quantitativos e na normalização das taxas de juro. Mas, em 2020, a instituição, nas mãos de Jerome Powell, viu-se obrigada a lança o QR4 para fazer face à pandemia. O BCE lançou o PEPP (Pandemic Emergency Purchase Programme), a sua própria versão do QE, um programa de compra de ativos públicos e privados que durou de 2020 a 2022. 

A rápida escalada inflacionista de 2021-2022 fez com que as principais economias saíssem do lado negro: do QE passaram para o QT ou quantitative tightening (retirada dos estímulos quantitativos), com o ciclo mais agressivo de subidas de taxas em quatro décadas. Agora impera o “higher for longer”, um contexto de taxas de juro mais altas durante mais tempo, com a inflação a resistir teimosamente ao objetivo dos bancos centrais e o consumo a aguentar-se contra todas as probabilidades. Como investidores profissionais, reconhecemos os aspetos positivos do regresso da inflação a um mundo em crescimento. Como gestores ativos, saudamos as divergências que regressaram ao mercado, utilizando a volatilidade que os bancos centrais estão a provocar em nosso favor. 

Frank Herbert escreveu em Dune: “A função mais elevada da ecologia é a compreensão das consequências”. Algo semelhante acontece com a economia: embora imperfeita, é uma ciência que permite compreender as ações das instituições monetárias para antecipar as suas consequências para o mercado. Na Fidelity, estamos à espera que os bancos centrais escrevam o próximo capítulo das suas políticas monetárias, seja com novos acrónimos ou com outros que já conhecemos.